sexta-feira, 17 de junho de 2011

Cristianismo x Psicanálise

às 11:23
Tá aí uma parte fundamental do livro Cristianismo puro e simples do CS Lewis.

Pra quem tem dúvidas sobre a relação entre a psicologia e o cristianismo.
Vale a pena ler.




Moralidade e Psicanálise

Eu disse que só teremos uma sociedade cristã quan­do a maioria dos indivíduos for cristã. Isso, evidente­mente, não quer dizer que devemos adiar a ação social para um dia imaginário num futuro distante. Quer di­zer, isto sim, que devemos começar os dois trabalhos agora mesmo - (1) o trabalho de ver como aplicar em detalhe na sociedade moderna o preceito "faça aos ou­tros o que gostaria que fizessem para você"; e (2) o tra­balho de nos tornarmos pessoas que realmente aplica­riam esse preceito se soubessem como fazê-lo. Gostaria agora de começar a tecer considerações sobre a idéia cris­tã de um homem bom — as instruções cristãs para o uso da máquina humana.

Antes de entrar em detalhes, gostaria de fazer duas afirmações mais gerais. Em primeiro lugar, já que a mo­ral cristã pretende ser uma técnica para colocar a máqui­na humana em ordem, achei que você gostaria de saber como ela se relaciona com outra técnica que pretende a mesma coisa - a saber, a psicanálise.

Devemos fazer uma distinção bem clara entre duas coisas: a primeira delas, a teoria médica propriamente dita e a técnica da psicanálise; a segunda, a visão geral de mun­do que Freud e outros vieram acrescentar a ela. Essa se­gunda coisa - a filosofia de Freud - está em contradi­ção direta com a de outro grande psicólogo, Jung. Além disso, quando Freud descreve a terapêutica para casos de neurose, fala como um especialista no assunto; mas, quando discorre sobre filosofia geral, fala como um ama­dor. Portanto, é sensato ouvi-lo falar sobre um assunto, mas não sobre o outro — e é isso que eu faço. Ajo assim porque me dei conta de que, quando Freud discorre sobre assuntos que não são de sua especialidade e que por acaso eu conheço bem (como é o caso do assunto "linguagem"), ele não passa de um ignorante. A psicaná­lise em si mesma, porém, separada de todos os enxertos filosóficos feitos por Freud e por outros, não está de for­ma alguma em contradição com o cristianismo. Suas técnicas coincidem com as da moralidade cristã em al­guns aspectos, e seria recomendável que toda pessoa soubesse algo sobre o assunto: as duas técnicas, porém, não seguem o mesmo curso até o fim, já que seus propósi­tos são diferentes.

Quando um homem faz uma escolha moral, duas coisas estão envolvidas. Uma delas é o próprio ato da es­colha. A outra, os diversos sentimentos, impulsos etc. que fazem parte do seu perfil psicológico e constituem a matéria-prima de suas escolhas. Essa matéria-prima pode ser de dois tipos. Por um lado, pode ser o que chamamos de normal: pode consistir nos sentimentos que são co­muns a todos os homens. Ou, por outro lado, pode con­sistir em sentimentos antinaturais, provenientes de dis­túrbios em seu subconsciente. O medo de coisas efetiva­mente perigosas é um exemplo do primeiro tipo; o medo irracional de gatos ou aranhas é exemplo do segundo. O desejo de um homem por uma mulher é do primeiro. O desejo pervertido de um homem por outro homem, do segundo. Ora, o que a psicanálise se propõe a fazer é eliminar os sentimentos anormais, ou seja, dar ao homem uma matéria-prima melhor para os seus atos de escolha; a moralidade trata destes atos em si mesmos.

Vamos dar um exemplo. Imagine três homens que vão à guerra. Um deles tem o medo natural do perigo que qualquer pessoa tem, mas vence-o pelo esforço mo­ral e se torna corajoso. Vamos supor que os outros dois tenham, como resultado do que existe em seu subcons­ciente, um medo irracional e exagerado diante do qual nenhum esforço moral consegue ser bem-sucedido. Imagine que um psicanalista consiga curar os dois, ou seja, colocá-los de novo numa situação idêntica à do primeiro homem. É nesse momento em que o proble­ma psicanalítico está resolvido que começa o problema moral. Com a cura, os dois homens podem seguir cami­nhos bastante diferentes. O primeiro deles talvez diga: "Graças a Deus, me livrei daquelas baboseiras. Enfim poderei fazer o que sempre quis — servir ao meu país." O outro, porém, pode dizer: "Bem, estou muito con­tente por me sentir relativamente tranqüilo diante do perigo, mas isso não altera o fato de que estou, como sempre estive, determinado a pensar primeiro em mim e a deixar que outros camaradas façam o trabalho arris­cado sempre que eu puder. Aliás, um dos benefícios de me sentir menos aterrorizado é que consigo cuidar de mim de forma mais eficiente e ser bem mais esperto para esconder esse fato dos outros." A diferença entre os dois é puramente moral, e a psicanálise não tem mais nada a fazer a respeito. Por mais que ela melhore a matéria-prima do homem, resta ainda outra coisa: a livre escolha do ser humano, uma escolha real feita a partir do ma­terial com que ele depara. O homem pode dar primazia a si mesmo ou aos outros. E este livre-arbítrio é a única coisa da qual a moralidade se ocupa.

O mau material psicológico não é um pecado, mas uma doença. Não é motivo para arrependimento, mas algo a ser curado, o que, por sinal, é muito im­portante. Os seres humanos julgam uns aos outros pe­las ações externas. Deus os julga por suas escolhas mo­rais. Quando um neurótico com horror patológico a gatos se obriga, por um bom motivo, a pegar um deles no colo, é bem possível que aos olhos de Deus esteja demonstrando mais coragem que outro homem que re­cebesse a Victoria Cross[1]. Quando um homem perver­tido desde a infância, durante a qual foi ensinado que a crueldade é correta, faz um pequeno gesto de bon­dade ou refreia-se de fazer um gesto cruel, correndo o risco de ser caçoado pelos seus companheiros, é possí­vel que, aos olhos de Deus, ele tenha feito mais do que nós faríamos se sacrificássemos nossa própria vida por um amigo.

Igualmente verdadeira é a possibilidade contrária. Há pessoas que parecem muito boas, mas fazem tão pouco uso de sua boa hereditariedade e de sua boa for­mação que acabam sendo piores que as que considera­mos perversas. Podemos dizer com certeza qual teria sido o nosso comportamento se sofrêssemos o estigma de um mau perfil psicológico e de uma má criação, com o agra­vante de subir ao poder, como um Himmler[2]? Esse é o motivo pelo qual os cristãos devem se abster de julgar. Só vemos o resultado das escolhas que os homens fa­zem a partir da matéria-prima de que dispõem. Deus, porém, não os julga por sua matéria-prima, mas pelo que fizeram com ela. Quase todo o arcabouço psicoló­gico do homem é derivado do corpo. Quando o corpo morrer, tudo isso desaparecerá, e o verdadeiro homem interior, aquele que escolhe e que pode fazer o melhor ou o pior com o material disponível, estará de pé, nu. Todas as coisas boas que pensávamos serem nossas, mas que não passavam do fruto de uma boa fisiologia, se­rão separadas de alguns de nós; e toda a sorte de coisas más, resultantes de complexos ou de uma saúde precária, serão separadas de outros. Veremos, então, pela primeira vez, cada qual como realmente era. Haverá surpresas.

Isso me traz à segunda questão. As pessoas normal­mente encaram a moral cristã como uma espécie de bar­ganha, na qual Deus diz: "Se você seguir uma série de regras, vou recompensá-lo; se não seguir, farei o con­trário." Não creio que essa seja a melhor forma de ver as coisas. Seria melhor dizer que, toda vez que tomamos uma decisão, tornamos um pouco diferente a parte cen­tral do nosso ser, a responsável pela decisão tomada. Considerando então nossa vida como um todo, com as inúmeras escolhas feitas ao longo do caminho, aos pou­cos vamos tornando esse elemento central numa criatura celeste ou numa criatura infernal: uma criatura em harmonia com Deus, com as outras criaturas e consigo mesma, ou uma criatura cheia de ódio e em pé de guer­ra com Deus, com as outras criaturas e consigo mesma. Ser uma criatura do primeiro tipo é o paraíso, é alegria, paz, conhecimento e poder. Ser do segundo tipo é a loucura, o horror, a idiotia, a raiva, a impotência e a so­lidão eterna. Cada um de nós, a cada momento, pro­gride em direção a um estado ou ao outro.

Isso explica o que sempre me causou perplexidade a respeito dos autores cristãos, tão rígidos num sentido e tão liberais e abertos em outro. Às vezes falam de me­ros pecados de pensamento como se fossem imensamen­te escandalosos; no momento seguinte, falam dos mais terríveis assassinatos e traições como se fossem algo do qual basta o arrependimento para se obter o perdão. Aca­bei por me convencer de que estão com a razão. Sua preocupação constante é a marca deixada por nossas ações na parte mais minúscula, mas central de nós mesmos, a parte que ninguém pode enxergar nessa vida, mas que cada um de nós terá de suportar — ou poderá fruir — para sempre. Um homem pode estar colocado nesta vida de tal modo que sua ira o leve a derramar o sangue de mi­lhares de seus semelhantes, e outro pode encontrar-se numa situação tal que, por mais irado que fique, só consegue ser motivo de chacota; a pequena marca deixada na alma, porém, pode ser a mesma num caso e no outro. Cada um deles deixou uma marca em si mesmo. A não ser que se arrependam, terão mais dificuldade para resistir à ira na próxima vez em que forem tentados, e cairão numa ira pior a cada vez que cederem à tenta­ção. Cada um deles, caso se volte seriamente para Deus, pode endireitar de novo essa deformação do homem interior; caso não se voltem, ambos estarão, a longo pra­zo, condenados. A grandeza ou pequenez do ato, visto de fora, não é o que realmente importa.

Uma última questão. Lembre-se de que, como eu dis­se, a caminhada na direção certa leva não só à paz, mas também ao conhecimento. Quando um homem melhora, torna-se cada vez mais capaz de perceber o mal que ainda existe dentro de si. Quando um homem piora, torna-se cada vez menos capaz de captar a própria maldade. Um homem moderadamente mau sabe que não é muito bom; um homem completamente mau acha que está coberto de razão. Nós sabemos disso intuitivamente. Entendemos o sono quando estamos acordados, não quando adorme­cidos. Percebemos os erros de aritmética quando nossa mente está funcionando direito, não no momento em que os cometemos. Compreendemos a natureza da em­briaguez quando estamos sóbrios, não quando bêbados. As pessoas boas conhecem tanto o bem quanto o mal; as pessoas más não conhecem nenhum dos dois.

[1] Condecoração militar britânica para atos de bravura. (N. do T.)

[2] Heirich Himmler (1900-1945), diretor da Gestapo e ministro do Interior durante o go­verno nazista na Alemanha, responsável pela aniquilação em massa de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. (N. do R. T.)

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